segunda-feira, 30 de março de 2015

Inocente, que nem criança

Crítica do filme 'Cinderela' publicada na Folha da Manhã  de 27/03/2015





Em 1950, depois de oito anos sem estrear uma animação de respeito, os Estudos Disney lançavam o filme “Cinderela”, que resultou um sucesso de bilheteria de tal magnitude que salvaria a empresa da sua iminente falência.  Com efeito, apesar de hoje venerados, filmes como “Pinochio” (1940), “Fantasia” (1940) e “Bambi” (1942), não retornaram o investimento almejado e, não fosse por Cinderela, provavelmente a Walt Disney Company tivesse encerrado suas atividades, ou, no melhor dos casos, teria se limitado à produção de filmes menos ambiciosos. Certamente, a Disneylândia e o Disney World não existiriam — imaginem só!

A questão é que, 65 anos depois, a Disney lança “Cinderela” em live-action, isto é, com atores ‘de carne e osso’.  A personagem principal é interpretada por Lily James (do seriado Downton Abbey), e o príncipe pelo ator Richard Madden (de Game of Thrones). A direção fica por conta nada menos que de Kenneth Brannagh, o ator/diretor britânico que iniciara sua carreira cinematográfica adaptando as obras de Shakespeare “Henry V” e “Hamlet”, e quem em 2011 dirigira a megaprodução “Thor”, da Marvel.

Há de se dizer que Brannagh, em “Cinderela”, toma uma decisão curiosa. Ele mantém praticamente inalterada a história do filme original, com a inteligente iniciativa de excluir os segmentos musicais. Sendo assim, não há muita coisa a revelar em relação ao clássico conto de Perrault que o leitor já não saiba, a não ser um prólogo onde conheceremos a mãe e o pai de Cinderela e saberemos como ela fica órfã. Também veremos a chegada à casa da malvada madrasta (uma Cate Blanchett impactante, mas sem ofuscar o resto do elenco) e suas frívolas filhas, prontas para infernizar a existência da boa moça.

O filme até revela a origem do nome da personagem. Infelizmente, a explicação não será facilmente entendida pelas crianças brasileiras, dado que aqui nunca se traduziu ao português. Recomendo, leitor, caso você seja o encarregado de levar os pequenininhos ao cinema, que os ajude informando-lhes previamente que a palavra ‘cinder’ significa ‘cinza’ em inglês.

“Cinderela” impacta pelo seu visual. Tanto as locações quanto os figurinos são deslumbrantes, e em nada fica atrás em relação ao desenho de 1950 no que tem a ver com a recriação fantástica desse reino de conto de fadas (falando delas, a encarregada de aprontar a protagonista para que possa se apresentar no baile é Helena Bonham Carter, a ex mulher de Tim Burton). A cena da dança no palácio certamente fascinará as meninas com idades entre 3 e 70 anos.

Mas, dentre todos os aspectos positivos que o longa tem, eu destacaria um que, no presente ponto da nossa cultura cinematográfica, resulta completamente inovador: a sua completa falta de cinismo. Não há em Cinderela uma única referência metalinguística a nenhum aspecto da cultura contemporânea, como pareceria ser a regra nos atuais filmes infantis. Não há, também, nenhum comic relief  que faça comentários mordazes. Tampouco veremos aqui o revisionismo irônico das estórias clássicas, à la Shrek, nem mudança no ponto de vista, como em “Malévola”.

O “Cinderela” de Kenneth Brannagh possui a pureza e a inocência dos contos que nos contam por primeira vez, naquele instante da vida onde não há lugar para parodias ou deboches, e onde os vilões são maus e os heróis, bonzinhos. Em outras palavras, “Cinderela” é tão cândido quanto uma criança deveria ser.

Poderia se pensar que um filme como este não funcionaria nos tempos atuais, em que os meninos deixam de acreditar em Papai Noel cada vez mais cedo. Mas nos Estados Unidos, onde estreou há duas semanas, já é um sucesso de bilheteria. Provavelmente o êxito também se repita no Brasil. Isso seria bastante auspicioso, pois indicaria que um simples e belo conto de fadas, sem a necessidade adereços sarcásticos, ainda é capaz de comover.

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