quarta-feira, 7 de março de 2018

A INIMIGA DA ARTE



Por que detestei o filme A Forma da Água, ou melhor, os Oscars que recebeu:


Leio a entrevista que o jornal espanhol El País fez ao escritor peruano Mario Vargas Llosa, por ocasião do lançamento de seu novo livro, “La Llamada de la Tribu”, onde Llosa faz uma autobiografia intelectual através dos pensadores que o levaram desde o comunismo, que abraçou nos anos 60, até o liberalismo.

O título da matéria sobre a entrevista é “A Correção Política é Inimiga da Liberdade”, frase que o escritor peruano solta no meio da conversa com o jornalista e que este não poderia deixar de aproveitar. Instado a explicá-la, Llosa diz:

“A correção política é inimiga da liberdade porque rechaça a honestidade, isto é, a autenticidade. Deve ser combatida como uma desnaturalização da verdade”

Ao ser indagado se as obras literárias que expressam o pensamento de canalhas, ou que são por estes produzidas, devem ser respeitadas, Llosa é contundente:

“Não apenas devem ser respeitadas. Devem ser publicadas. Se você começa a julgar a literatura em função da moral e da ética, a literatura não apenas fica dizimada, ela desaparece... não teria razão de existir. A literatura expressa aquilo que a realidade teima em ocultar por diversos motivos. Nada estimula o espírito crítico numa sociedade como a boa literatura, sem contar a beleza que significa e o prazer que produz. Mas a literatura e a moral se confrontam, são inimigas, e você tem que respeitar a literatura se acredita na liberdade.”

Se no parágrafo anterior se substituísse ‘literatura’ por ‘cinema’, a sua lógica permaneceria intacta (aliás, poderia ser substituída pela palavra ‘arte’, e pronto).  Muitas das principais obras primas da cinematografia foram politicamente incorretas. Pra começar, lembremos “O Nascimento de uma Nação” (1915) de W. D. Griffith, com sua exaltação ao Ku Klux Klan, ou a visão pró-sulista da guerra civil americana que mostra “E o Vento Levou” (1939). Outros exemplos clássicos são toda a obra nazista da documentarista Leni Riefenstahl, os filmes de Luis Buñuel, e quase todo o cinema de comédia italiano dos 60 e 70, com expoentes marcantes como “Caros Amigos” (1975) de Mario Monicelli, e especialmente “Feios, Sujos e Malvados” (1976) de Ettore Scola, um filme que seria impossível de ser realizado hoje.

É por isso que, para este que escreve, a consagração no domingo passado do filme “A Forma da Água” na entrega dos prêmios Oscar, é tão revoltante. Nada contra o sexo interespécies – que fique claro. O que indigna é que o cerne do filme seja a intenção de satisfazer e confirmar a visão politicamente correta de que os deficientes (com ascendência latina), os homossexuais e os negros são os bonzinhos, os oprimidos e os rechaçados, enquanto o branco norte-americano é um ser poderoso, consumista e desumano. Afinal, nessa divisão arbitrária há também uma generalização estúpida – nem todos aqueles são tão virtuosos, nem estes são todos tão malvados.

A Academia de Hollywood preferiu, como costuma fazer com não pouca frequência, premiar aquilo que acha que são suas próprias virtudes, que neste caso seria estar politicamente do lado certo. Parece ignorar que o que faz grande o cinema (ou a arte) é a ousadia, a contradição, a complexidade e o estímulo ao pensamento, como fez o filme Três Anúncios para um Crime, por exemplo. Chancelar o que já pensamos sobre os direitos sociais, e ficar por ai mesmo, é pouca coisa para merecer um prêmio.

A entrevista a Vargas Llosa, em espanhol, pode ser lida aqui.

sábado, 28 de novembro de 2015

EU VEJO GENTE DOIDA

Crítica de  A VISITA, publicada na Folha da Manhã em 28/11/15




Quando no ano de 1999 foi lançado O Sexto Sentido o seu diretor, M. Night Shyamalan, então com apenas 28 anos, foi considerado uma das promessas mais talentosas de Hollywood. Havia motivos para o entusiasmo. O Sexto Sentido tinha um roteiro intrigante (do próprio Shyamalan) que precisava de uma direção acurada e meticulosa para não estragar a surpresa final, e o jovem indiano a tinha superado o desafio com sucesso.

Os filmes imediatamente posteriores que Shyamalan fez (Corpo Fechado, Sinais, A Vila) mantiveram essa proposta de narrar uma história cuja premissa era disparatada, mas que se tornava verossímil devido à habilidade que o diretor tinha para criar a estrutura narrativa que pudesse sustentar o peso da loucura que apresentava. Lembremos Corpo Fechado, por exemplo: um segurança depressivo se revelava um herói invencível que não podia ser ferido nem morto, mas ele nunca tinha reparado disso até se encontrar com seu oposto, um arqui-inimigo frágil e doente. Parece loucura, é era, mas uma loucura bem bolada.

Entretanto, a cada novo filme, a premissa ia se tornando cada vez mais absurda, e a tolerância do espectador chegou a um limite a partir de A Dama D’Água, pois depois desse filme a os delírios fantásticos e a pretensão apresentada não eram acompanhados da antiga habilidade do diretor em narrar histórias convincentes.

A Visita, o ultimo trabalho de Shyamalan, deve ser celebrado, pois se trata de um retorno ao estilo de seus primeiros longas. Um pequeno conto de terror que também é de certa forma uma comédia negra. Dois irmãos, uma adolescente que anseia ser documentarista e um garoto com aspirações de ‘rapper’, vão visitar pela primeira vez seus avôs maternos, os quais tinham cortado relações com a mãe dos meninos antes destes nascerem.  A casa dos coroas onde os jovens passarão uma semana fica numa fazenda afastada da cidade, e eles logo perceberão que as costumes de seus parentes são bastante perturbadoras, especialmente a partir das 21:30h, horário em que é melhor não sair do quarto de dormir.

Shyamalan adota o estilo ‘found footage’ para narrar sua fábula, de maneira tal que as únicas imagens que vemos são as produzidas pela câmera da protagonista, que está tentando fazer um documentário sobre a sua família. Esta modalidade, que se revelou muito eficiente para histórias de horror a partir de “A Bruxa de Blair”, produz alguns momentos de inquietação e sobressaltos, mas por vezes parece forçada demais. É um subgênero que começa a mostrar sinais de esgotamento, embora continue tendo um apelo significativo no público adolescente.


Todavia, recomendo não assistir A Visita esperando ver um filme de terror, pois a frustração estará garantida. Se trata, bem mais, de uma sátira de terror. Uma adaptação, muito livre e tenebrosa, do velho conto de João e Maria, aquele onde os dois irmãos se deixavam seduzir por uma anciã e a sua casinha de doces. Shyamalan pega daquela estória a ideia da confrontação entre a inocência da juventude e a perversão da velhice, alertando também à criançada acerca de como podem ser demenciais certos relacionamentos familiares, quando se prefere o orgulho ao amor.  Um defeito que, esperamos, o próprio Shyamalan parece ter corrigido da sua filmografia.

sábado, 19 de setembro de 2015

CENA DA LUTA DE CLASSES EM MORUMBI

Crítica do filme QUE HORAS ELA VOLTA?, publicada na Folha da Manhã em 19/09/2015




A figura da empregada doméstica que dorme no emprego, ou seja, na casa dos patrões, está fortemente arraigada na cultura brasileira. Embora esse tipo de relação laboral tenha diminuído nos últimos anos, é difícil encontrar um apartamento ou casa que não tenha ‘quarto da empregada’, espaço que, felizmente, vem sendo utilizado pelos moradores para outras finalidades. Sem pretender fazer aqui análise sociológica, é fácil deduzir que as raízes desse fenômeno provêm da enorme desigualdade econômica que o Brasil sofreu ao longo da sua história, que permitia que até famílias de classe média pudessem dispor de uma empregada em tempo integral. Soma-se, também, um inconfessável ressabio elitista da época imperial, que estabelece que certas tarefas não podem nem devem ser feitas “pela gente”: lavar roupa, varrer, fazer a cama, etc.

“Que horas ela volta?” revela essa relação de hierarquias e submissões que ainda subsiste na sociedade brasileira, embora muitas vezes de forma inconsciente. Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica pernambucana que trabalha e mora na casa de Carlos e Bárbara, um matrimônio de classe media alta residente em Morumbi, São Paulo. Val foi também a babá de Fabinho, o filho do casal que, apesar de ser já adolescente, se mostra mais apegado à doméstica do que a própria mãe. A Val tem uma filha, Jéssica (Camila Márdila) que está vindo do Recife para morar com a mãe, disposta a estudar em São Paulo. Dado que a Val reside na casa dos patrões, a Jéssica terá que se integrar à família. O conflito surgirá da percepção, por uns e outros, de que agora tem em casa uma pessoa que não se ajusta nem ao conceito de hóspede, nem de parente, nem de empregada.

A diretora Anna Muylaert  consegue, com díspar sucesso, criar nessa casa de Morumbi um universo livre dos maniqueísmos e exageros próprios  do paternalismo didático da maioria dos realizadores brasileiros.  O donos de casa aparentam ser um casal gente boa, educados e respeitosos com os seus empregados. Um casal ‘progressista’. O filho tem verdadeira afeição filial pela Val, a quem recorre até quando não consegue dormir. Todavia, o distanciamento hierárquico aparece a todo instante, de forma quase que inevitável, seja ao solicitar a retirada da louça depois de uma conversa cordial, seja no rosto da Val, preocupada ao ver que a sua filha está saboreando o sorvete “do Fabinho”. Nesse aspecto, destaca-se a cena da reunião que acontece na residência, onde a câmera acompanha à Val servindo petiscos aos convidados. Não há ali sublinhados nem pinceladas grossas; não são necessários: a submissão social é revelada ao mostrar o evidente.

Infelizmente, essa sutileza é turbada em algumas passagens onde a mensagem é dita de forma mais exagerada, como se Muylaert  precisasse reforçar aquilo que já foi sugerido. Estes deslizes se concentram especialmente em Bárbara, a dona de casa, que por breves momentos adquire aspectos caricatos de personagem de novela, num marcado contraste com a interessantíssima figura do seu marido, Carlos. O chefe da família, interpretado por Lourenço Mutarelli, possui uma repressão emocional  que se revelará em certo ponto de uma  forma patética, mas maravilhosa e absurdamente triste.

Mas qualquer defeito de “Que horas ela Volta?”  que tenhamos apontado fica compensado diante a magnífica e deliciosa interpretação de Regina Casé. Ela dá vida a uma Val cheia de amor, dedicação, sofrimento e alegria de uma forma tão convincente e simpática, que a sua simples presença na tela justifica, por si só, assistir o filme. Basta ver o desempenho de Casé na cena onde informa o resultado do vestibular da filha para entender que estamos frente a uma enorme atriz.

A Val de Casé deverá ser lembrada como uma das grandes personagens do cinema brasileiro, pois é também homenagem e modelo. É um tributo para essas mulheres que, encurraladas dentro das suas enormes limitações provindas de uma história de pobreza e injustiça, decidem fugir para adiante com as poucas armas que a vida lhes outorgou: o carinho e o trabalho. E é exemplo quando finalmente entende que, sem o inconformismo, o sacrifício é apenas uma forma voluntaria de escravidão.

sábado, 29 de agosto de 2015

OLHA PARA TRÁS


Crítica do filme CORRENTE DO MAL, publicada na Folha da Manhã em 29/08/15

Eis aqui um dos mais interessantes filmes do ano, que se estréia timidamente apenas numa sala de um dos cinemas de nossa cidade. Ele foi lançado com pouca divulgação, com um atraso de quatro meses em relação à estréia mundial e rebatizado apelativamente para ficar mais sintonizado com o que os distribuidores acham ser o gosto do público adolescente – o título original é ‘It Follows’, literalmente ‘Te Segue’.



Ele tem tudo para passar batido nas salas brasileiras. Pior: ele tem tudo para que parte dos assistentes saiam desapontados, achando que viram um filme de terror “que não assusta”.  Mas isto se deve a uma distorção que o espectador tem daquilo que se interpreta como terror.

Já escrevemos alguma vez que ‘terror’ poderia ser definido como o medo àquilo que não se vê, enquanto ‘horror’ é o medo (ou o nojo) daquilo que assistimos. A grande maioria dos lançamentos definidos como de terror são na verdade filmes de horror, cheios de monstros deformes, de mutilações e de sangue jorrando profusamente (exemplo disto é a horrorosa franquia “Jogos Mortais”).

‘Corrente do Mal’ assustará àqueles espectadores que são capazes de se incomodar com o plano de uma porta aguardando angustiosamente a chegada de alguém (ou algo) que a abrirá. É o medo daquilo que imaginamos, do nosso monstro pessoal de características únicas, aquele que ninguém além de nós mesmos criaria tão espantosamente. Pode ser que a porta nunca se abra, mas já não dá para tirar o susto.

Jay (Maika Monroe) é uma adolescente que mora nos subúrbios de uma Detroit atemporal  (o design de arte localiza propositalmente a ação entre os ’70 e o presente). Depois de ter sexo por primeira vez com um rapaz, este lhe confessa, de maneira brutal, que a partir desse momento alguém a seguirá. Pode ter a aparência de um conhecido, ou não, mas somente ela poderá vê-lo. Se a alcançar, ela morre. A única forma de se livrar dessa perseguição é passar adiante a praga, tendo sexo com outra pessoa, que será o novo alvo. Mas atenção: se esse pobre infeliz for morto, a maldição retorna para o transmissor.

Apesar de ser o seu segundo filme, o diretor David Robert Mitchell demonstra ter um grande domínio dos instrumentos narrativos, além de uma elegância que nos lembra o Kubrick de “O Iluminado”. Há uma utilização muito inteligente do formato panorâmico, ao centralizar os personagens no centro do quadro. A diferença da maioria dos filmes do gênero, que preferem ambientes claustrofóbicos, ‘Corrente do Mal’ se passa na maior parte do tempo em locações externas, e a amplitude visual funciona como elemento de inquietação: por algum ponto do fundo da imagem alguém se aproximará andando. Será perigoso?

 A metáfora apresentada, a principio, pode parecer obvia e moralista: a questão das doenças sexualmente transmissíveis e a importância de evitar a promiscuidade e as relações casuais. Mas convém não se apressar nas interpretações, pois o buraco está bem mais embaixo. Para saber onde, basta prestar atenção às dicas que a história nos fornece: a cena no cinema, onde um personagem manifesta querer voltar a ser criança; uma citação, perto do final, de “O Idiota” de Dostoiévski. Um grande filme se completa quando o espectador faz a sua parte, que é tentar entendê-lo. Trabalhe, platéia!


O desfecho é outro ponto em que o filme se diferencia da maioria da produção atual. Lá, onde o público desavisado irá ver insignificância, é que se manifesta o momento mais terrível e melancólico, pois é o instante onde se percebe que aquilo que foi contagiado é o medo. O medo de crescer, o medo de virar adulto, o medo de morrer. E que nos seguirá para sempre.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Divã a 2

Crítica de DIVÃ A 2, publicada na Folha da Manhã em 22/05/2015

“O Divã”, filme de José Alvarenga Jr. lançado em 2009, contava a história de uma mulher de meia idade, aparentemente feliz, que acudia ao psicanalista tentando descobrir a causa de certo desconforto emocional. No processo, a personagem iria descobrir o seu ‘outro lado’, passando a questionar valores aparentemente sagrados como o matrimonio, a fidelidade, a devoção ao lar, etc.

A beleza de Vanessa Giácomo e o excesso gengival de Rafael Infante

“Divã a 2”, por sua vez, se apresenta como uma seqüência desse primeiro filme, ao utilizar a mesma arte visual no seu título e tratar sobre personagens que contam suas vidas perante um psicólogo. Entretanto, as similitudes param por ai. E não apenas porque sejam atores e situações diferentes, mas principalmente porque suas ‘mensagens’ diferem completamente. Além disso, o primeiro longa funcionava como comédia, enquanto o segundo não apenas  falha estrondosamente na tarefa de provocar sequer um sorriso, como nos apresenta um falso final feliz que na verdade é profundamente desolador.

Eduarda (Vanessa Giácomo) é uma médica ortopedista casada com Marcos (Rafael Infante), produtor de eventos. Embora ambos sejam profissionais bem sucedidos, a relação entre eles não anda muito bem, revelando o desgaste de um casamento prematuro. De comum acordo, o casal decide ‘dar um tempo’ no relacionamento, e assim cada um irá se aventurar na procura de novos parceiros amorosos, enquanto lidam com os problemas derivados da separação, especialmente no que diz respeito ao cuidado do filho de 10 anos.


O segundo ato do filme, assim, se dedica a mostrar os encontros românticos que cada um deles experimenta com terceiros. Enquanto Marcos parece encarar essa nova etapa da sua vida sem nenhum tipo de peso na consciência, a Eduarda se revela reticente em abrir seu coração, mas a sua melhor amiga (Fernanda Paes Leme) dará a ela alguns conselhos sobre como ‘se soltar’ e começar a curtir a sua nova vida de desimpedida.

Até esse ponto, o longa poderia ser qualificado como uma comédia romântica medíocre: as cenas carecem do timing adequado; o desempenho dos atores é bastante desigual (destaque para Giácomo, pela beleza e pelo talento) e as situações são previsíveis e ligeiramente engraçadas. Surpreende, pelo descaro, o ‘merchand’ que é realizado de certos produtos: a câmera passa a focar neles interrompendo a narrativa grosseiramente.

Todavia, o pior está por chegar. O terceiro ato é um desastre na narração, na direção (uma constrangedora cena de Fernanda Paes Leme que destoa de seu aceitável desempenho até esse ponto) e, no pior de tudo, na ‘moral’ da história. Pois, se até o final do segundo ato a ideia que se passava era a importância de Eduarda procurar a felicidade sem se importar com os convencionalismos impostos pela sociedade e pelo machismo, na terceira parte o roteiro força a barra para que uma série de eventos a obriguem a decidir o seu futuro da forma menos voluntária que poderia acontecer.

Um filme, assim como qualquer narração, é um caminho a ser atravessado por um personagem. Quem determina o percurso é o personagem, mas o próprio caminho também faz mudar, em algum aspecto, o indivíduo. Em “Divã a 2” a Eduarda percorrerá um trajeto circular, e a maior angústia que terá o espectador será perceber que nem a personagem, nem os realizadores, se deram conta disso. A imagem congelada da última cena, supostamente feliz, é tão perturbadora quanto o sorriso de Rafael Infante. Nos créditos finais aparecerá o único lance engraçado de “Divã a 2”, mas virá tarde demais.

Tomei o (leve) trabalho de contar, no inicio do filme, as logomarcas das entidades privadas e públicas que cooperaram na realização: foram 15. Para ser um longa que se limita a mostrar pessoas falando frente à câmera, cabe perguntar qual o destino, e o sentido, de tanto apoio, patrocínio e colaboração.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Cinema Veloz, Furioso e Monopólico

Crítica do filme Velozes e furiosos 7, publicada na Folha da Manhã em 24/04/2015




O escritor argentino Jorge Luis Borges, com a elegância e diplomacia que o caracterizava, dizia que quando você está lendo um livro com desprazer, deve abandoná-lo pois ele, naquele instante, não foi feito pra você.

Confesso que pensei nessa frase de Borges ao assistir “Velozes e furiosos 7”, adaptando-a da literatura para o cinema. Um filme que não tinha sido feito pra mim. E não porque o considerasse artisticamente inferior àquilo que poderia ser o meu ‘patamar cinéfilo’. Longe disso. Simplesmente porque é um tipo de cinema que não me causa prazer.

Entretanto, devo reconhecer que “Velozes 7” tem seus méritos. O primeiro (para os produtores) talvez seja a capacidade de manter a franquia no topo das bilheterias. Aqui no Brasil, na primeira semana de exibição levou mais de sete milhões de espectadores, ficando no alto do ranking dos filmes mais assistidos. Não apenas isso, “Velozes 7” superou “Tropa de elite 2” como o filme de maior renda na história do mercado nacional. O sucesso local inclusive supera, em termos proporcionais, o que vem acontecendo nos Estados Unidos.

Semelhante êxito não vem por acaso. Entre os fatores que ajudaram à assistência massiva de público certamente poderíamos apontar a morte de Paul Walker, o co-protagonista, que viera a falecer durante a rodagem, ainda na sua fase inicial (sua participação só pode ser ‘completada’ graças à tecnologia digital). A esse trágico acontecimento, se soma uma boa campanha de divulgação que deu a entender, espertamente, ser este o ultimo filme da saga. Diante do espetacular faturamento, receio que a contagem dos filmes “Velozes e furiosos” atinja os dois dígitos.

Mas não sejamos injustos: há fatores endógenos, próprios do filme, que contribuem para o seu sucesso. Entre eles devemos destacar as cenas de ação, é claro, recheadas de perseguições automobilísticas, explosões, lutas e disparos, e que foram realizadas com a perícia, o exagero e a grandiosidade que se espera nesta classe de histórias. Além disso, agregam-se ao elenco estável da série os nomes de Jason Statham (o astro daquela outra franquia chamada “Carga explosiva”) interpretando aqui o vilão, e Kurt Russell, cuja aparição funciona como uma espécie de homenagem àquela classe de filmes de ação que o astro interpretara na sua juventude, especialmente as “Fugas” de Nova York e Los Angeles, ambos de John Carpenter.

O roteiro, por sua vez, tem a astúcia suficiente para conceber uma história que justifique desde a variedade de paisagens e locações quanto as peripécias dos protagonistas, que deverão cumprir uma série de ‘trabalhos’ encomendados pelo suposto agente da CIA (Russell), com o objetivo final de derrotar o vingativo Deckard Shaw (Statham). De toda sorte, compreender os meandros da trama é totalmente prescindível.

A grande jogada dos produtores de Velozes talvez tenha sido saber mudar a natureza da franquia antes que esta se esgotasse. Até o quinto filme, tratavam-se das aventuras de um grupo de semi-marginais cuja paixão pelas corridas ilegais de rua os levavam a cometer diversos crimes, enquanto eram perseguidos por policiais infiltrados. A partir do sexto, a equipe de Dominic Toretto transformou-se num grupo altamente especializado na realização de ‘trabalhos’ por encomenda das autoridades, visando capturar outros bandidos mais perigosos.

A despeito do conselho de Borges, não posso apenas abandonar “Velozes 7” alegando não ser ele o tipo de filme pra mim. Em primeiro lugar porque a função de crítico me obriga a analisá-lo, entendê-lo e orientar o leitor para que saiba de que classe de filme se trata. Mas também porque não há para onde fugir: os filmes da categoria de “Velozes e furiosos” praticamente monopolizam as salas a nível mundial. Que fique claro: o problema não é que seja mau cinema (acho que não é); o problema é que seja o único cinema.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

INDIFERENTE

Crítica de INSURGENTE, publicada na Folha da Manhã em 03/04/15


Num certo futuro, aquilo que alguma vez foi a cidade de Chicago será dividida em cinco facções: Amizade, Abnegação, Erudição, Franqueza e Audácia. Numa determinada idade, todos os jovens devem escolher a qual facção irão permanecer pelo resto das suas vidas, baseados em testes prévios que pré-determinam a escolha a tomar. Quem não se encaixa completamente num dos grupos, é considerado divergente, e aparentemente são uma ameaça para o sistema todo.


Logicamente, a protagonista de Insurgente, Tris  (Shailene Woodley), é uma divergente. No primeiro filme da franquia, “Divergente”, ela tinha escolhido o grupo de Audácia, e o seu roteiro se dedicava a narrar os ritos de iniciação e treinamento que ela e outros candidatos deviam passar para serem admitidos como integrantes da facção. Entretanto, o seu espírito rebelde a levaria despertar uma revolta contra os planos da facção Erudição, cuja líder Jeanine, interpretada por Kate Winslet, pretende se impor por sobre o resto.


Nesta continuação, Tris está refugiada na facção Amizade, junto com seu namorado e outros ex integrantes de Audácia. Amizade é uma comunidade paz-e-amor que se dedica a atividades agropecuárias, e não quer brigar com ninguém. Tris, como já tinha acontecido na Audácia, não se sente a vontade aqui.  Acha chato.  Mas o aborrecimento será resolvido logo, pois uma força de Audácia invadirá Amizade em busca de divergentes, os quais serão procurados dado que só eles podem decifrar uma mensagem encriptada numa caixa misteriosa, cuja revelação, segundo entende a líder de Erudição, lhe dará o poder absoluto.


Se toda a explicação anterior lhe resultou confusa, não se preocupe, pois isto não tem a menor importância. Esse arcabouço argumental funciona apenas como desculpa para sustentar uma cambada de cenas de ação, recheadas de efeitos visuais impactantes que remetem a filmes como Matrix e A Origem, através de suas alusões a realidades virtuais e combates que só acontecem na cabeça da protagonista.


A franquia  Divergente pertence a um recente subgênero  da ficção científica que poderíamos denominar ‘distopias adolescentes’, similares a outras séries de filmes como são“Os Jogos Vorazes” e “Maze Runner: Correr ou Morrer”.


Em todas elas, os protagonistas são jovens inseridos em sociedades totalitárias pós apocalípticas, que decidem se rebelar contra a estratificação de classes, estabelecidos pelas autoridades, e acabam liderando revoltas tendentes a construir um novo modelo de comunidade. Entretanto, esta historia padrão, que tem suas particularidades em cada série (uma competição perversa em “Jogos Vorazes”; um labirinto a ser percorrido em “The Maze Runner”; etc.) funcionam apenas como uma espécie de cenografia temática numa arena de luta. Não há nenhuma intenção de refletir acerca dos perigos das desviações totalitárias, como o faziam os romances “1984”, “Fahrenheit 451” ou “A Laranja Mecânica”, todos eles adaptados em versões cinematográficas. Nestes, falava-se em verdade de ameaças ao presente, embora fantasiado como futuro.


Nestas novas distopias adolescentes, pareceria que o que se tenta apenas é produzir uma  empatia etária com o público, identificando-o aos protagonistas, que são jovens inconformados com os abusos das regras criadas pelos adultos, isto é, os pais. Mas, como bem apontara Aluysio Barbosa (aqui)na sua crítica sobre o mesmo filme, para rebeldia já tínhamos “Clube dos cinco” de John Hugues.
Todavia, receio que “Insurgente” nem sequer pretenda gerar algum tipo de  identificação com os adolescentes. Desconfio que o seu verdadeiro propósito seja simplesmente fornecer ao espectador de duas horas para que possa comer pipoca, e se esquecer tanto do que se passa fora do cinema quanto dentro dele, fascinando-o com imagens de prédios explodindo em câmera lenta. Insurgente é uma espécie de ‘soma’, aquela droga supostamente inofensiva dessa outra distopia chamada  “Admirável Mundo Novo”.




segunda-feira, 30 de março de 2015

Inocente, que nem criança

Crítica do filme 'Cinderela' publicada na Folha da Manhã  de 27/03/2015





Em 1950, depois de oito anos sem estrear uma animação de respeito, os Estudos Disney lançavam o filme “Cinderela”, que resultou um sucesso de bilheteria de tal magnitude que salvaria a empresa da sua iminente falência.  Com efeito, apesar de hoje venerados, filmes como “Pinochio” (1940), “Fantasia” (1940) e “Bambi” (1942), não retornaram o investimento almejado e, não fosse por Cinderela, provavelmente a Walt Disney Company tivesse encerrado suas atividades, ou, no melhor dos casos, teria se limitado à produção de filmes menos ambiciosos. Certamente, a Disneylândia e o Disney World não existiriam — imaginem só!

A questão é que, 65 anos depois, a Disney lança “Cinderela” em live-action, isto é, com atores ‘de carne e osso’.  A personagem principal é interpretada por Lily James (do seriado Downton Abbey), e o príncipe pelo ator Richard Madden (de Game of Thrones). A direção fica por conta nada menos que de Kenneth Brannagh, o ator/diretor britânico que iniciara sua carreira cinematográfica adaptando as obras de Shakespeare “Henry V” e “Hamlet”, e quem em 2011 dirigira a megaprodução “Thor”, da Marvel.

Há de se dizer que Brannagh, em “Cinderela”, toma uma decisão curiosa. Ele mantém praticamente inalterada a história do filme original, com a inteligente iniciativa de excluir os segmentos musicais. Sendo assim, não há muita coisa a revelar em relação ao clássico conto de Perrault que o leitor já não saiba, a não ser um prólogo onde conheceremos a mãe e o pai de Cinderela e saberemos como ela fica órfã. Também veremos a chegada à casa da malvada madrasta (uma Cate Blanchett impactante, mas sem ofuscar o resto do elenco) e suas frívolas filhas, prontas para infernizar a existência da boa moça.

O filme até revela a origem do nome da personagem. Infelizmente, a explicação não será facilmente entendida pelas crianças brasileiras, dado que aqui nunca se traduziu ao português. Recomendo, leitor, caso você seja o encarregado de levar os pequenininhos ao cinema, que os ajude informando-lhes previamente que a palavra ‘cinder’ significa ‘cinza’ em inglês.

“Cinderela” impacta pelo seu visual. Tanto as locações quanto os figurinos são deslumbrantes, e em nada fica atrás em relação ao desenho de 1950 no que tem a ver com a recriação fantástica desse reino de conto de fadas (falando delas, a encarregada de aprontar a protagonista para que possa se apresentar no baile é Helena Bonham Carter, a ex mulher de Tim Burton). A cena da dança no palácio certamente fascinará as meninas com idades entre 3 e 70 anos.

Mas, dentre todos os aspectos positivos que o longa tem, eu destacaria um que, no presente ponto da nossa cultura cinematográfica, resulta completamente inovador: a sua completa falta de cinismo. Não há em Cinderela uma única referência metalinguística a nenhum aspecto da cultura contemporânea, como pareceria ser a regra nos atuais filmes infantis. Não há, também, nenhum comic relief  que faça comentários mordazes. Tampouco veremos aqui o revisionismo irônico das estórias clássicas, à la Shrek, nem mudança no ponto de vista, como em “Malévola”.

O “Cinderela” de Kenneth Brannagh possui a pureza e a inocência dos contos que nos contam por primeira vez, naquele instante da vida onde não há lugar para parodias ou deboches, e onde os vilões são maus e os heróis, bonzinhos. Em outras palavras, “Cinderela” é tão cândido quanto uma criança deveria ser.

Poderia se pensar que um filme como este não funcionaria nos tempos atuais, em que os meninos deixam de acreditar em Papai Noel cada vez mais cedo. Mas nos Estados Unidos, onde estreou há duas semanas, já é um sucesso de bilheteria. Provavelmente o êxito também se repita no Brasil. Isso seria bastante auspicioso, pois indicaria que um simples e belo conto de fadas, sem a necessidade adereços sarcásticos, ainda é capaz de comover.

A história de uma despedida

Crítica do filme "Para Sempre Alice" publicada na Folha da Manhã de 20/03/2015


Para sempre Alice — Por que assistimos filmes tristes? Qual o sentido de perder duas horas vendo uma história que nos irá angustiar? Uma possível resposta talvez esteja no poema do uruguaio Mario Benedetti, chamado ‘A Alegria da Tristeza’ onde diz que ‘há uma alegria estranha / desbloqueada / de saber que ainda podemos ficar tristes’.

Para Sempre Alice é um filme triste. Não tem como não ser, pois nos conta a história de uma professora em lingüística, interpretada por Julianne Moore, que aos 50 anos descobre possuir o mal de Alzheimer, numa variante de feroz progressividade. O longa, assim, dedica-se a revelar a maneira em que a doença afetará tanto à professora quanto ao resto da sua família, composta pelo seu marido (um contido Alec Baldwin) e seus três filhos.

Narrar a decadência de uma mente brilhante que fatalmente irá se apagar é sempre uma historia triste. Mas há formas de encarar a tristeza, e isso tem a ver com o efeito que se deseja produzir no espectador: pena, raiva, indignação, lástima, etc. Para Sempre Alice procura, apenas, aquela ‘alegria da tristeza’ de Benedetti. E não é pouco.

Tanto a direção quanto o desempenho de Julianne Moore se destacam por aquilo que é um dos maiores atributos dos grandes artistas: saber o que deixar fora da sua obra. No caso dos diretores Richard Glatzer e Wash Westmoreland há de se mencionar a decisão de manter durante quase todo o filme um tom livre de comiserações e apelações demagógicas. Nem sempre isto é atingido – há alguma que outra queda no sentimentalismo — mas reconforta saber que as cenas que mais impactam no filme não são aquelas onde vemos a Alice vitima da enfermidade. O que realmente emociona são os momentos onde ela luta e se debate contra o olvido, como, por exemplo, na cena da palestra que realiza na associação que combate a doença.

Faço um parêntese aqui para apontar a contradição entre o título original, Still Alice (Ainda Alice) e o que colocaram os distribuidores locais, Para Sempre Alice. Aquele é uma manifestação de resistência; este, uma inútil expressão de desejo. Parafraseando Rita Lee, aquele é cinema; este é novela.
A interpretação de Julianne Moore demonstra mais uma vez o grande talento que tem para assumir uma personagem sob forte carga emocional, com a sensibilidade e a dignidade que já demonstrara, por exemplo, naquela atriz pornô de espírito maternal de Boogie Nights;  na dona de casa doente de Safe;  na mãe que deve provar a existência de seu filho morto em Os Esquecidos;  na esposa que vê o seu mundo cair em Longe do Paraíso. A atriz ganhou este ano o Oscar por Para Sempre Alice, mas o premio foi também um reconhecimento aos seus trabalhos anteriores. Moore representa, como poucas mulheres, a dualidade entre a força e a fragilidade que toda mulher carrega.

O grande logro de Para Sempre Alice é que evita a tentação da lagrima fácil e dos golpes baixos. Com efeito, o filme escolhe transitar pelo caminho da dignidade, do carinho, e, principalmente, do pudor. Pois há pudor ao não humilhar a personagem; ao ampará-la durante o trajeto ao seu destino inevitável. Isto se manifestará, principalmente, ao se acenderem as luzes do cinema e percebermos até onde foi contada a história de Alice.


Não vou revelar os detalhes do desfecho. Direi, apenas, que os realizadores optam pela respeitosa decisão de finalizar o longa mostrando aquela Alice. A Alice que, apesar de tudo, ainda é. Aquela Alice que, antes de se adentrar nas terras incógnitas do esquecimento permanente, ainda possui uma frestinha de lucidez para dizer, com enorme esforço, sua última palavra no filme e que, talvez, seja a última que dirá para sempre. A palavra mais importante de todas.

sábado, 23 de novembro de 2013

Um golpe anunciado


Um estranho anúncio foi publicado hoje no O Globo, embaixo da coluna de Ancelmo Góis.

Uma empresa chamada Rar Engenharia apresenta "o motor totalmente mecânico movido exclusivamente pela energia contida na gravidade".


Tem o endereço de uma página web. Nela, aparecem fotos da construção do enorme aparelho, em Porto Alegre. Informam que outro aparelho similar está sendo construído em Estados Unidos.


O movimento perpétuo não existe. Pelo menos, até agora, nenhum engenheiro o conseguiu.


Como diria o titular da coluna acima do anúncio, parece golpe. E é.


Atualização 10:53h: se quiser saber um pouco mais por quê é impossível atingir o movimento perpétuo, leia esta interessante matéria da revista Galileu, aqui.