sábado, 29 de agosto de 2015

OLHA PARA TRÁS


Crítica do filme CORRENTE DO MAL, publicada na Folha da Manhã em 29/08/15

Eis aqui um dos mais interessantes filmes do ano, que se estréia timidamente apenas numa sala de um dos cinemas de nossa cidade. Ele foi lançado com pouca divulgação, com um atraso de quatro meses em relação à estréia mundial e rebatizado apelativamente para ficar mais sintonizado com o que os distribuidores acham ser o gosto do público adolescente – o título original é ‘It Follows’, literalmente ‘Te Segue’.



Ele tem tudo para passar batido nas salas brasileiras. Pior: ele tem tudo para que parte dos assistentes saiam desapontados, achando que viram um filme de terror “que não assusta”.  Mas isto se deve a uma distorção que o espectador tem daquilo que se interpreta como terror.

Já escrevemos alguma vez que ‘terror’ poderia ser definido como o medo àquilo que não se vê, enquanto ‘horror’ é o medo (ou o nojo) daquilo que assistimos. A grande maioria dos lançamentos definidos como de terror são na verdade filmes de horror, cheios de monstros deformes, de mutilações e de sangue jorrando profusamente (exemplo disto é a horrorosa franquia “Jogos Mortais”).

‘Corrente do Mal’ assustará àqueles espectadores que são capazes de se incomodar com o plano de uma porta aguardando angustiosamente a chegada de alguém (ou algo) que a abrirá. É o medo daquilo que imaginamos, do nosso monstro pessoal de características únicas, aquele que ninguém além de nós mesmos criaria tão espantosamente. Pode ser que a porta nunca se abra, mas já não dá para tirar o susto.

Jay (Maika Monroe) é uma adolescente que mora nos subúrbios de uma Detroit atemporal  (o design de arte localiza propositalmente a ação entre os ’70 e o presente). Depois de ter sexo por primeira vez com um rapaz, este lhe confessa, de maneira brutal, que a partir desse momento alguém a seguirá. Pode ter a aparência de um conhecido, ou não, mas somente ela poderá vê-lo. Se a alcançar, ela morre. A única forma de se livrar dessa perseguição é passar adiante a praga, tendo sexo com outra pessoa, que será o novo alvo. Mas atenção: se esse pobre infeliz for morto, a maldição retorna para o transmissor.

Apesar de ser o seu segundo filme, o diretor David Robert Mitchell demonstra ter um grande domínio dos instrumentos narrativos, além de uma elegância que nos lembra o Kubrick de “O Iluminado”. Há uma utilização muito inteligente do formato panorâmico, ao centralizar os personagens no centro do quadro. A diferença da maioria dos filmes do gênero, que preferem ambientes claustrofóbicos, ‘Corrente do Mal’ se passa na maior parte do tempo em locações externas, e a amplitude visual funciona como elemento de inquietação: por algum ponto do fundo da imagem alguém se aproximará andando. Será perigoso?

 A metáfora apresentada, a principio, pode parecer obvia e moralista: a questão das doenças sexualmente transmissíveis e a importância de evitar a promiscuidade e as relações casuais. Mas convém não se apressar nas interpretações, pois o buraco está bem mais embaixo. Para saber onde, basta prestar atenção às dicas que a história nos fornece: a cena no cinema, onde um personagem manifesta querer voltar a ser criança; uma citação, perto do final, de “O Idiota” de Dostoiévski. Um grande filme se completa quando o espectador faz a sua parte, que é tentar entendê-lo. Trabalhe, platéia!


O desfecho é outro ponto em que o filme se diferencia da maioria da produção atual. Lá, onde o público desavisado irá ver insignificância, é que se manifesta o momento mais terrível e melancólico, pois é o instante onde se percebe que aquilo que foi contagiado é o medo. O medo de crescer, o medo de virar adulto, o medo de morrer. E que nos seguirá para sempre.

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